A frase do título representa uma denúncia de Mons. João
Batista Scalabrini, então bispo de Piacenza, norte da Itália, no final do século
XIX e início do seculo XX. Scalabrini – denominado “pai e apóstolo dos
migrantes” – referia-se aos intermediários gananciosos e sem piedade que, no
fenômeno das grandes migrações históricas da época, traficavam com a abundante mão-de-obra
dos emigrados europeus (especialmente italianos) para as Américas, a Austrália
e a Nova Zelândia. Segundo historiadores da envergadura de Eric Hobsbawn e
Peter Gay, entre 1820 e 1920, mais de 60 milhões de pessoas deixaram o velho
continente com o objetovo de reconstruir a vida nas “terras novas” de além-mar.
Vítimas da expulsão em massa do campo para a cidade, enquanto certa porcentagem
se empregava na indústria nascente, boa parte não conseguia trabalho, tendo de
cruzar os oceanos para fugir de um destino de miséria e fome na Europa rápida e
recentemente urbanizada.
Entre o desemprego, a pobreza e a necessidade, por um
lado, e o desafio de “far l’America”,
por outro, interpunham-se os tais “mercadores de carne humana”. Mercadores, sim, porque gente sem coração
e sem alma diante dos dramas humanos causados pelos efeitos da Revolução
Industrial. Ao contrário, aproveitavam-se da condição e das esperanças dos
emigranetes que buscava um futuro melhor para a família, comercializando
inescrupulosamente os seus sonhos de trabalho e pão, pátria e dignidade. Se é
verdade que a mobilidade humana faz parte do direito de ir e vir, também é certo que muitas vezes tais
deslocamentos intercontinentais tornavam-se forçados e compulsórios, devido ao
êxodo rural em massa e as condições extremamente precárias nos países ou regiões
de origem.
Passou-se mais de um século, porém a frase/denúncia de
Scalabrini continua viva e atual, como uma chaga aberta em pleno século XXI. O
tráfico de seres humanos para a exploração trabalhista ou sexual atualmente atinge
milhões de pessoas no mundo inteiro, como mostram os debates em torno da
Campanha da Fraternidade deste ano , promovida pela Conferência Nacional dos
bispos do Brasil (CNBB). Juntamente com o tráfico de armas e de drogas,
constitui uma das fontes de maior rentabilidade da economia submersa do mundo
globalizado. Verdadeira bomba atômica, oculta e letal, que silenciosamente
fere, mutila e mata, deixando marcas irreparáveis nas vítimas que sobrevivem e
em suas famílias. Os relatos de quem conseguiu escapar de tais “infernos humanos”
não deixam margem a dúvidas!
Nos subterrâneos sombrios das relações internacionais (e
às vezes em plena luz do dia), a rede mundial do crime organizado não poupa
particularmente mulheres e crianças, quando o objetivo e a exploração ao máximo
de sua energia. No fim da linha desse comércio ilegal e ilegítimo, grande parte
dos sonhos se convertem em pesadelos. Como o continente africano nos tempos da
escravidão, o Brasil hoje vem sendo um dos países que fornecem bom número de
“trabalhadores e trabalhadoras” para essas transações criminosas. O texto-base
da CF/2014 traça um quadro preocupante sobre os pontos nevrálgicos das rotas
nacionais e internacionais, bem como da origem e destino das pessoas
envolvidas.
As reflexões e orientações da CF/2014, iluminadas pela
Palavra de Deus, nos colocam diante de um desafio que interpela a todos e a
cada um em particular: o que fazer diante dessa situação? Três palavras
poderiam resumir nossa solicitude pastoral, como exigência evangélica, e nossas
possibilidades de ação social ou política: acolhida, denúncia e informação.
A acolhida constitui,
digamos assim, o DNA não somente da Pastoral Migratória, mas da Pastoral Social
de toda a ação evangelizadora. No caso dos tráfico de pessoas humanas, a atitude
de acolhida requer uma sensibilidade especial diante das feridas profundas das
vítimas, na maioria das vezes tão difíceis de serem cicatrizadas. Em nível
pessoal ou familiar, eclesial ou social, impõe-se uma solidariedade
incondicional para com aqueles e aquelas que sofreram tais abusos. Não cabem
aqui a discriminação e o preconceito, nem o racismo e a xenofobia. Tampouco
cabem limitações geográficas, eclesiais ou geopolíticas, uma vez que o próprio
crime desrespeita fronteiras de qualquer espécie. Em tudo e por tudo, deve
prevalecer a defesa do direito e da dignidade da pessoa humana – fundamento, fio
condutor e coluna vertebral de toda a Doutrina Social da Igreja.
A denúncia, por
sua vez, torna-se a chave para combater o tráfico nacional e internacional. Neste
caso, porém, convém utizar de prudância: não se trata tanto uma denúncia em nível
local e personalizado, a qual, embora corajosa e profética, pode acarretar
perseguições desnecessárias. Ainda que em determinadas circunstâncias essa postura
não possa ser evitada, o mais indicado segue sendo a denúncia em nível
institucional, envolvendo movimentos e pastorais sociais, entidades, organizações
não governamentais, o conjunto das Igrejas, setores dos governos, da Polícia
Federal e do Ministério Público, bem como os organismos internacionais de
defesa dos direitos humnos. Novamente aqui a ação dever ser ampla, conjunta e
abrangente – isto é, sem fronteiras. Devido ao poder e aos meios inescrupulosos
do crime organizado, a proteção das vítimas e das pessoas que defendem sua
causa não pode ser desconsiderada, ao contrário, deve tornar-se uma preocupação
constante.
Quanto a informação,
esta se revela uma condition sine qua non,
seja nos pólos e regiões de origem, seja nos lugares de destino. Números, fatos
e rotas do crime organizado devem ser divulgadas amplamente entre as famílias, associações,
escolas, comunidades, meios de comunicação e em toda a sociedade. A revolução
informática em geral e Internet em particular podem reveler-se um instrumento
eficaz no combate ao traáfico, como de resto o é para os próprios traficantes.
Todos os meios devem ser utilizados para desmascarar e desmantelar a cadeia
internacional do crime organizado em todas as suas ramificações. A informação atualizada
e permanente pode figurar como um verdadeiro antivírus, uma vacina contra a possibilidade de cair na ratoeira do
tráfico, não raro um caminho sem retorno. Semelhante rede, como bem sabemos,
concentra um duplo caráter de risco: encontra-se ramificada em praticamente
todo o mundo e não respeita códigos de conduta, ou pior ainda, segue
rigorosamente o princípio radical da eliminação de “arquivos”.
Tokyo, Japão, 13 de fevereiro de 2014
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